Via Abong
Túnis despediu-se no dia 28 de março da 10ª edição do Fórum Social Mundial (FSM). A capital da Tunísia tornou-se, ao lado de Porto Alegre, o outro grande território de identidade do FSM, ao abrigar mais de uma vez a edição mundial do evento. A realização desta edição do FSM 2015, cujo tema foi “Dignidade, Direitos”, ocorreu em condições adversas inesperadas, que mudaram parte dos rumos e expectativas do evento e impuseram decisões e adaptações por parte da organização e das pessoas, organizações e movimentos participantes.
O lançamento do FSM 2015 no contexto político tunisiano pós-atentado
O primeiro fato inesperado foi de ordem política: no dia 18 de março, seis dias antes do início do evento, o país e o mundo foram surpreendidos por um atentado no renomado Museu do Bardo, ao lado do Parlamento tunisiano. 24 pessoas foram brutalmente assassinadas, 45 feridas, a maioria turistas das mais diversas nacionalidades e regiões do mundo. “Os sangues dos povos se misturaram”, declararam os dirigentes do Fórum Tunisiano de Direitos Econômicos e Sociais (FDTDES), que coordena a organização do evento. O FSM 2015 não foi cancelado e a confirmação da participação da maior parte das delegações soou como apoio ao povo tunisiano na sua luta contra as forças conservadoras e antidemocráticas. Durante todo o período do evento, participantes de outras regiões do mundo ouviram tunisianos e tunisianas na cidade repetirem incansavelmente: “Vocês são benvindos!” e “a presença de vocês é importante para o povo tunisiano!”.
O atentado do dia 18 de março foi unanimemente condenado na política e na sociedade local e reconhecido como uma ameaça direta à institucionalidade democrática em construção na Tunísia. O pequeno país de 11 milhões de habitantes foi o berço de um processo revolucionário que começou no início de 2011. A primavera árabe, como foi chamada, estendeu-se a nove países nas regiões do Magrebe e do Maxerreque, no Norte da África e no Oriente Médio, e derrubou quatro ditadores. Em março de 2015, passados quatro anos, a Tunísia é o único desses países engajado no fortalecimento da democracia.
O atentado do Museu do Bardo também pode ter outras fortes implicações para a população tunisiana. Teme-se a diminuição do turismo, um dos principais setores da economia nacional. Nas políticas de segurança nacional, o combate ao terrorismo, em nome da defesa da democracia, corre o risco de traduzir-se pela restrição das liberdades individuais. No âmbito da política internacional, o atentado foi amplamente divulgado pela grande mídia no mundo, ocorrendo dois meses e meio depois do atentado na sede da revista Charlie Hebdo, em Paris, reativando o debate sobre as políticas de combate ao terrorismo dos grupos extremistas islamitas. Uma marcha foi anunciada e realizada no dia 29 de março pelo governo tunisiano, um dia depois do encerramento do FSM, com a participação de diversos chefes de Estado notadamente europeus.
Toda essa conjuntura impactou em cheio a organização e o lançamento do FSM. Como era esperado, a segurança foi amplamente reforçada nos principais espaços de circulação dos/as participantes do FSM, hotéis e alojamentos, ruas e praças. Orientações foram repassadas para as diversas delegações. O acesso ao campus da Universidade El Manar, sede central do evento, era feito mediante detector de metal e revista das bolsas. Uma medida, provavelmente, necessária, mas, no mínimo, surpreendente em um espaço como o FSM onde se discute, por exemplo, a mobilidade e a supressão das fronteiras.
Mas, a principal consequência do atentado para o FSM foi de natureza política. O lançamento do evento com o debate na sociedade tunisiana e na mídia local sobre o significado do FSM caiu na armadilha da luta contra o terrorismo. O percurso da Marcha de Abertura foi modificado. O local de concentração foi transferido para outro lugar (porta Bab Saadoun) para poder chegar até o Museu do Bardo, lugar simbólico ideal para expressar a solidariedade dos povos do mundo. Visões diferentes sobre o significado da marcha opuseram de um lado o coletivo de organizações que coordenou o envio da delegação brasileira e outras organizações e movimentos do Conselho Internacional (CI) e do outro a coordenação do comitê organizador local, que divulgou de forma precipitada informações focando exclusivamente a luta contra o terrorismo.
Na coletiva de imprensa de lançamento do FSM, no dia 23 de março, a Abong, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Brasileira de Mulheres (UBM), que representaram a delegação brasileira ao lado das organizações do comitê organizador, explicitaram de forma incisiva o lema da marcha: “Povos unidos para liberdade, igualdade, justiça social e paz, em solidariedade às vítimas do terrorismo e de todas as formas de opressão”. Mas, a mídia local, informada equivocadamente, não mudou o seu entendimento. Em entrevista à TV tunisiana, um representante da Abong recebeu a seguinte pergunta: “qual a sua mensagem, e dos povos aqui reunidos, para os/as terroristas?”
O FSM 2015 e a delegação brasileira
O equívoco político da marcha poderia ter sido mais grave, se não fosse um segundo acontecimento inesperado: a chuva, que surgiu de forma intensa na abertura do FSM. Consequência das mudanças climáticas, das insatisfações de Iansã, de São Pedro, de Alá ou simplesmente do acaso do tempo, a marcha foi implacavelmente afetada. Debaixo de trombas de água, alguns milhares de participantes desfilaram, com destaque para a expressão de representações argelinas. Não houve palanque, mas muitas palavras de ordem e a multidão dispersou-se. Diferentemente do FSM 2013, a marcha não foi um momento significativo para dar início ao evento.
As atividades do FSM começaram realmente no campus universitário da Universidade El Manar a partir do dia seguinte (25). Filas imensas formaram-se para o credenciamento. Atrasos, dificuldades na orientação dos/as participantes e desorganização não faltaram, mas o que falou mais alto foi a diversidade dos povos e das causas defendidas.
O campus era dividido em grandes espaços temáticos: o cruzamento da cidadania, onde predominavam os debates do país sobre o processo de transição; um espaço voltado para autodeterminação dos povos, com destaque para os povos palestino e saarauí; o bairro planeta que tratava das questões ambientais, como o acesso à água e a preparação da COP21, que será realizada em Paris no final do ano; a Praça da Justiça Social onde eram discutidas as questões de direitos humanos; o bairro da Igualdade, da Dignidade e dos Direitos, que reunia, entre outras, pessoas com deficiência, migrantes, mulheres, LGBT e povos tradicionais; e enfim a Praça da Economia e das Alternativas.
No total, cerca de 45.000 pessoas e 4.400 organizações e movimentos de 122 países fizeram-se presentes. A maioria da África do Norte e do Oriente Médio, mas também da Europa, de diversos países africanos e das outras regiões do mundo. O número foi inferior às expectativas iniciais (antes do atentado, esperava-se cerca de 60.000 pessoas), mas permaneceu expressivo. Mais de 1.000 atividades autogestionadas aconteceram durante o todo o evento.
A delegação brasileira, a mais importante da América Latina, destacou-se pela sua diversidade. Cerca de 200 pessoas de mais de 100 organizações e movimentos de todo o Brasil representaram os mais diversos segmentos: movimentos negros, juventude, mulheres, pessoas com deficiência, reforma agrária, saúde, educação, centrais sindicais, movimentos culturais, direito à cidade, justiça ambiental, justiça de transição, LGBT, povos tradicionais, democratização da comunicação, economia solidária, entre outros.
A participação da delegação brasileira foi resultado de um projeto coletivo de âmbito nacional: um processo participativo levou à realização de diversos eventos de mobilização nos dois últimos anos, dentre os quais um seminário internacional preparatório rumo a Túnis em janeiro passado, em Salvador, e um processo público de seleção de representantes de organizações. Paralelamente, houve dinâmicas próprias de articulação das organizações em diversos Estados, como na Bahia (onde uma parte da delegação recebeu o apoio do Governo do Estado), Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e Amazonas. Coordenado por sete organizações (Abong, Ciranda, CUT, Flacso, Geledés, Instituto Paulo Freire (IPF) e UBM) e gerenciado pela Abong, o projeto nacional recebeu o apoio da Petrobras e da Secretaria Geral da Presidência.
No espaço do FSM, a tenda Casa Brasil era ponto de referência e de encontros. As organizações brasileiras propuseram um conjunto de debates sobre assuntos de interesse comum, em parceria com outros atores internacionais da sociedade civil e com representantes governamentais brasileiros. De forma geral, foi ressaltada a alta qualidade das mesas sobre participação social e popular, experiências e modelos democráticos, Agenda Pós 2015, enfrentamento ao racismo e democratização da comunicação. Merece ainda ser citada recepção da delegação brasileira pela Embaixada do Brasil realizada na noite do dia 26, com a presença de representantes dos governos federal, dos Estados de São Paulo e da Bahia, entre outros.
Vale ainda ressaltar que a delegação brasileira organizou uma missão humanitária à Palestina, logo depois do FSM, para conferir os abusos cometidos no campo da violação dos direitos humanos e prestar solidariedade à população local.
A necessidade de reinvenção do FSM
Ainda é cedo para fazer um balanço do FSM 2015. Diferentemente do FSM 2013, quando houve uma quase unanimidade sobre o êxito do evento, as opiniões das pessoas participantes sobre o FSM 2015 são as mais diversas. São tantos os olhares quanto pessoas e movimentos participantes, cada um enxergando de um lugar específico, com uma visão própria que responde a determinadas expectativas.
Algumas pessoas destacam no evento a expressão fortalecida de lutas, a exemplo do movimento LGBT, que realizou, pela primeira vez no país, uma marcha sobre o tema, ou o enfrentamento ao racismo, que se firmou como questão fundamental na dinâmica do FSM e nos assuntos de direitos humanos na Tunísia. Os movimentos de desempregados da região também conseguiram criar e lançar a Rede Mundial de Luta contra o Desemprego e o Trabalho Precário e chamaram pela adesão de outras organizações do resto do mundo.
Em relação à presença brasileira, os primeiros elementos de análise recolhidos em reuniões da delegação brasileira e do seu coletivo facilitador no final do FSM revelaram uma avaliação globalmente positiva em relação ao evento, à participação brasileira, à condução do projeto de mobilização, pelo seu caráter transparente e democrático, e que possibilitou uma composição plural da delegação, ou ainda sobre as parcerias estabelecidas entre as organizações e com os parceiros apoiadores. A presença em Túnis viabilizou espaços de formação social e política, intercâmbios e articulações, nacional e internacionalmente, nos mais diversos campos de atuação.
No entanto, as críticas também foram mais frequentes do que na edição de 2013. A juventude tunisiana, por exemplo, tinha perdido parte do seu entusiasmo pós-revolucionário que caracterizou o FSM anterior, dando lugar a certo ceticismo em relação ao processo democrático em curso no país, depois da vitória nas eleições, no final do ano passado, de um partido de coalizão dominado pelos liberais. A preocupação com a situação social e política na região também atingia grande parte das organizações do mundo árabe frente às situações de guerras civis, de militarização dos regimes ou ainda da existência de grupos extremistas antidemocráticos. Nem todos conseguiram reacender no FSM a chama da utopia e da esperança de um mundo melhor.
Tampouco sabemos até que ponto os novos movimentos, que foram a origem de levantes populares em diversas partes do mundo desde o início da década, conseguiram articular-se com os movimentos mais tradicionais, inclusive na região. O que sobressaiu foram os conflitos entre alguns movimentos argelinos e outros da Tunísia e de Marrocos, ou ainda a greve dos voluntários no meio do evento, que mobilizou centenas de jovens de toda a Tunísia e revelou certo desconforto em relação às condições de trabalho e à condução do evento.
Ainda é prematuro afirmar que o FSM 2015 foi capaz de delinear uma estratégia articulada de superação do capitalismo e trazer respostas viáveis à crise civilizatória pela qual passa a humanidade. De forma geral, a convergência das lutas em pautas comuns permanece o grande desafio do FSM: o momento final de convergência das convergências, como nas edições anteriores do evento, não foi exitoso. O resultado de todas as assembleias de convergência ainda não está disponível e deve ajudar a responder melhor a este questionamento, principal objetivo do FSM na atual conjuntura.
Articulação das lutas e convergências em pautas comuns estavam dentre as principais desafios desta edição e permanecem no âmbito planetário, como também nas escalas regionais e nacionais. No caso da delegação brasileira, a sua participação foi diversa, mas por outro lado foi dispersa. O desafio de uma articulação mais global também está posto para as organizações e movimentos brasileiros. Nesse sentido, o Brasil deu início a uma dinâmica de articulação entre as organizações em torno do FSM que merece ter continuidade: pode ajudar para além das suas fronteiras, para apontar caminhos para o próprio processo de FSM.
No meio dessas indefinições e ambiguidades, o que pode ser afirmado é que o FSM, no mínimo, passa por dificuldades de ordem política e metodológica. O FSM corre o risco de tornar-se uma grande feira de reflexão, coordenada por algumas poucas organizações distantes da realidade e das ações dos movimentos de base. E as ONGs, tratadas erradamente como um bloco monolítico, encontram-se no centro das queixas voltadas para a governança do processo do FSM.
Na reunião do Conselho Internacional, que ocorreu nos dois dias que sucederam o evento, vários jovens gritaram: “vocês se comportam como um governo!” ou ainda “vocês não nos representam!”. Essas afirmações apontam para a necessidade de uma nova governança para o processo do FSM e de uma reinvenção das formas de se fazer política. A decisão do CI de confirmar a realização da próxima edição mundial do evento na cidade de Montreal, no Québec (Canadá), em agosto 2016, pode ajudar nesse sentido: responde a uma iniciativa dos movimentos de juventude daquele país que, assim como na Tunísia e no Brasil, deixam transparecer uma nova cultura política.
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