Em 2002, Fórum reuniu mais de 50 mil pessoas em seis dias de debates (Foto: Ayrton Centeno/Sul21)
[Abong e Jornal Sul21]
Fernanda Canofre
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Em sua segunda edição, o Fórum Social Mundial já estava consolidado como o grande evento mundial da esquerda. Se no ano anterior, Porto Alegre havia surgido como o contraponto ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça; em 2002, a capital gaúcha já não tinha como ser ignorada nos debates do hemisfério norte. Mais de 50 mil pessoas, vindas de 150 países, participaram de 700 encontros, seminários, palestras e conferências em busca de soluções para uma globalização de pessoas, não mais do capital. Tudo isso em apenas seis dias.
“A marcha de abertura foi praticamente um alento de força da militância e da esquerda mundial e em especial a do Brasil”, lembra Salete Camba, envolvida desde o início com a organização do Fórum como representante do Instituto Paulo Freire. Além de militantes e representantes de movimentos sociais vindos de todos os cantos do planeta, autoridades começaram também a reconhecer a importância do debate social diante da elite econômica do mundo. Três candidatos à presidência da França preferiram Porto Alegre a Nova York – cidade que sediou o Fórum Econômico – naquele ano. A viúva do ex-presidente François Miterrand, Danielle, e o ex-presidente de Portugal, Mário Soares, também vieram ao sul. Além deles, o Fórum contou com a presença de três ganhadores do Prêmio Nobel da Paz – Adolfo Pérez Esquivel, Rigoberta Menchú e Morten Rostrup, da Médicos Sem Fronteiras – e do linguista Noam Chomsky.
Acampamento da Juventude, no Parque Harmonia, com 15 mil participantes. (Foto: FSM 2002)
A tentativa de reunir outra vez norte e sul por teleconferência duroumenos de 10 minutos. Os dois fóruns continuavam em pontos extremos do mesmo debate. Segundo o New York Times,enquanto o Fórum Econômico cobrava em torno de U$S 25 mil por cada delegado participante, o Fórum Social mantinha taxas em torno de U$S 50. Mas, dessa vez, a ONU resolveu mandar um reconhecimento oficial do Fórum ao sul do mundo através de uma carta escrita pelo presidente Kofi Annan.
Annan tentou construir uma ponte entre os dois eventos, como uma resposta às provocações do ano anterior, quando militantes e ativistas chamaram a atenção para a concentração da entidade em Davos, na Suíça, e ausência em Porto Alegre. Na carta, porém, Annan também mandava um recado crítico a quem estava a 8 mil km de distância de seu assento em Nova York: “Vocês, como sociedade civil, precisam demonstrar que estão prontos para trabalhar em conjunto para a mudança, em vez de permanecer afastados e indiferentes através de políticas de confronto”.
A ONU foi duramente criticada por seu papel diante das guerras que começavam a estourar no pós-11 de setembro. O Fórum de 2002 foi o primeiro realizado depois dos atentados às Torres Gêmeas, onde o espírito anti-bélico era a tônica das milhares de pessoas que se uniam outra vez no Rio Grande do Sul para encontrar um novo mundo. Novamente os debates giravam em torno da discriminação contra as mulheres, memórias das ditaduras militares na América Latina, protestos contra os transgênicos e patentens genéticas, o racismo, a Aliança de Livre Comércio das Américas (ALCA). Mas a guerra, ainda na fumaça dos ataques terroristas nos Estados Unidos, era o assunto dominante.
Chomsky e “nós, os malucos”
O linguista do MIT Noam Chomsky (Foto: Wikipedia)
Mesmo num mundo pós-11 de setembro, Chomsky seguia tácito na sua afirmação de que os “verdadeiros terroristas” seguiam sendo os EUA. Em entrevista à Folha de São Paulo, pouco antes de chegar a Porto Alegre, ele disse: “Por centenas de anos, a Europa e seus asseclas praticaram terror em larga escala e atrocidades no resto do mundo. Em 11 de setembro, pela primeira vez, eles foram alvos das mesmas atrocidades”.
Sua conferência lotou. Todos tentaram um espaço para ouvi-lo falar sobre a guerra ao terrorismo financiada por seu país de origem. Para Chomsky, a resposta dos Estados Unidos aos ataques da Al-Qaeda foram apenas “o pretexto que faltava para que a indústria armamentista voltasse a receber incentivos, porque os gastos na área militar já haviam crescido antes dos atentados de 11 de setembro”.
Em meio a um público definido pelo sentimento de crítica ao neoliberalismo, Chomsky surpreendeu ao declarar que “o único movimento anti-globalização estava em Nova York”. Ele defendeu que a nova era foi iniciada graças a organização dos trabalhadores e salientou a persistência da “guerra de classes” para traçar as diferenças entre os dois encontros mundiais. Em Porto Alegre, ele via uma oportunidade “sem paralelo” de unir forças populares de países pobres e ricos para “romper a concentração ilegítima de poder e estender os domínios da justiça e da liberdade”. Chomsky comentava o FSM como “um dos mais encorajadores desenvolvimentos da cena mundial em muitos anos”. Mas nos Estados Unidos, estavam os “detentores de um poder ilegítimo” protagonizando seu próprio encontro.
No ano seguinte, Chomsky ainda voltaria a Porto Alegre para ser recebido em pé pelo público. Uma história para outra semana.
Conferências Paz no Mundo
Anfiteatro Pôr-do-Sol recebeu parte das conferências e seminários | Foto: FSM 2002
A Conferência de Noam Chomsky foi a primeira de uma série discutindo a Paz no Mundo. Os protestos contra as guerras que iniciavam ali – no Iraque e Afeganistão – fez com que a ministra francesa da Juventude e Esportes, que participava do evento,levar torta na cara pelo apoio de seu país aos EUA. Depois do professor do MIT, três Prêmios Nobel marcaram presença nos auditórios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul para falar sobre o peso que as guerras tem na conta das mazelas sociais do mundo.
O ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, laureado em 1980, debateu o Plano de Paz para a Colômbia, criticando os acordos que abriram caminhos para a instalação de bases militares norte-americanas no país e defendeu que “o caos social no país latino tem que ser compreendido no contexto dos outros acontecimentos no continente”. Rigoberta Menchú, guatemalteca e líder indígena, que recebeu o prêmio em 1992, pediu a participação de políticos nos debates realizados no Fórum e lamentou que no cenário pós-11 de setembro “os temas sociais tivessem sido completamente deixados de lado, como se a dor norte-americana houvesse apagado a de todos os outros povos que sofrem”. O terceiro Nobel a participar da Conferência foi o norueguês Morten Rostrup, um dos fundadores da organização Médicos Sem Fronteiras reconhecida pelo prêmio em 1999.
Além das conferências pela paz, durante o Fórum houve a construção do debate em torno da Assembleia Pública Mundial Sobre os Gastos de Guerra. A ideia era que o encontro servisse para votar o melhor reencaminhamento para o orçamento de U$S 800 milhões gastos anualmente com indústria bélica. Por mais de 9 mil votos, três vezes a mais que o segundo colocado, os delegados elegeram o combate à fome no mundo como a prioridade.
As críticas de contraste entre Norte e Sul seriam ainda concretizadas com uma marcha contra a assinatura da ALCA, que levou 20 mil pessoas às ruas de Porto Alegre. O acordo de livre comércio entre os países das Américas, tutelado pelos Estados Unidos, era a representação do imperialismo para a esquerda.
Marcha contra a ALCA na Av. Borges de Medeiros, no centro de Porto Alegre | Foto: FSM 2002
Um Outro Brasil Seria Possível?
Em 2002, o Rio Grande do Sul era um território da esquerda. A capital já havia se tornado uma das primeiras no Brasil a eleger um prefeito do Partido dos Trabalhadores, em 1988, com Olívio Dutra. Quatorze anos depois, Olívio ocupava o governo do estado e Tarso Genro a prefeitura. Debaixo de bandeiras clássicas do partido e de programas de democracia participativa como o Orçamento Participativo, os programas que o PT pretendia para o Brasil na campanha presidencial que ocorreria no final do ano, se revelavam na prática em Porto Alegre.
Foi assim que Luis Inácio “Lula” da Silva subiu à mesa da conferência “Um Outro Brasil É Possível”. Como pré-candidato à Presidência e presidente de honra do PT, Lula lembrou os presidentes do continente envolvidos em corrupção na primeira década de democracia no Mercosul, defendeu a reforma agrária, pediu a valorização dos povos indígenas, afirmando que o Brasil só conseguiria a mudança no momento em que tratasse preconceito e discriminação cravados a fundo na nossa História.
Será possível construir um novo país quando as minorias, quaisquer que elas sejam, forem respeitadas na sua dignidade, na sua cidadania e nas suas opções sexuais”, declarou ele, segundo reportagem da Rádio Gaúchana época.
Para parte da imprensa, foi exatamente a presença de líderes do PT entre os debates o ponto fraco do FSM. Daniel Piza, escrevendo para o Estadão, disse que o Fórum mais parecia uma “convenção partidária” do que uma reunião de ideias. Nas suas manchetes, os jornais brasileiros adotaram uma linha de cobertura do Fórum que acontecia em ano eleitoral, que divergia do que os estrangeiros viam. Como escreveu Luiz Antonio Magalhães, o FSM estava fora da pauta dos nossos jornais:
“La mondialisation, de Porto Alegre à New York” (Le Monde, França); “Porto Alegre 2002, il ritorno dei no global” (Corriere Della Sera, Itália); “Globalisation: Anti-global protest fights on a new front” (The Independent, Inglaterra); “La globalización, a examen tras los atentados del 11-S” (El País, Espanha); e “Brasil: Foro Social Mundial a punto de abrir sus puertas” (Granma, Cuba).
Manchetes das edições eletrônicas dos quatro mais importantes jornais brasileiros na noite do mesmo dia: “Scolari agride torcedor em Goiânia” (Estadão.com, sítio do jornal O Estado de S. Paulo); “Ex-garçom de restaurante onde jantou Celso Daniel é preso em São Paulo” (Folha Online, da Folha de S. Paulo); “Garçom suspeito da morte de Celso Daniel é preso” (JB Online, do Jornal do Brasil), e Felipão agride torcedor em Goiânia (Globo.com, d’O Globo).
É tarefa quase acaciana comentar as discrepâncias. A impressão que se tem é que há dois mundos totalmente diferentes, duas realidades que não se cruzam. Fora do Brasil, o Fórum Social Mundial é noticiado ao lado do escândalo Enron, da guerra ao terrorismo e, obviamente, do convescote de Davos, neste ano transferido para a cidade de Nova York.
“Impactado pela edição de 2001 que mostrou a capacidade da sociedade civil se mobilizar e criar alternativas, a esquerda brasileira encontrou no FSM uma fonte de inspiração de propostas e um espaço de diálogo para organização das lutas e políticas públicas. Sem sombra de dúvidas o FSM 2002 foi celeiro para a construção do programa de governo para a campanha de Lula, bem como fortaleceu a necessidade de união para que a eleição fosse vitoriosa”, analisa Salete Camba.
No final daquele 2002, Lula se elegeria presidente da República com 61,27% dos votos, dando início a uma era de 16 anos de governos petistas. O Brasil e o Fórum ainda teriam caminhos paralelos a percorrer nos anos seguintes. Algumas vezes mais próximos, outras mais afastados.
Eu estive nessa marcha e em todas em POA!!!