Todas as sextas-feiras, o Sul21 publica [ em parceria com a ABONG] a série de artigos relembrando os 15 anos do Fórum Social Mundial. Toda semana relembraremos uma edição e seus momentos mais marcantes. O próximo FSM acontecerá em agosto de 2016, no Canadá, mas para celebrar a data, a cidade de Porto Alegre receberá uma edição comemorativa entre os dias 19 e 23 de janeiro de 2016.
Leia também
Especial FSM – 2002: O ano em que o Fórum Social marchou contra a Guerra
Especial FSM – 2001: O ano em que o Sul descobriu que um mundo novo era possível
Fernanda Canofre
“Sentado na escadaria central do prédio 40 da PUCRS, Francisco Whitaker dava as ótimas entrevistas em inglês e francês, às 16h30min de ontem. Aos 71 anos, ele é um dos principais integrantes da comissão organizadora do Fórum Social Mundial.
– Não estou me aguentando mais – confessava Whitaker, que embarca hoje de volta para São Paulo”. Assim uma matéria publicada no jornal Zero Hora, no dia 29 de janeiro de 2003, descrevia o fim da terceira edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. “Efetivamente nesse dia eu não podia senão estar exausto. Como conseguia me exprimir em outras línguas, eu era bastante solicitado pelos jornalistas de fora do Brasil”, lembra ele, 12 anos depois.
Chico Whitaker foi a segunda pessoa a quem Oded Grajew procurou com a ideia do evento que nasceu para ser a antítese do Fórum Econômico de Davos. Desde o início, o autor de “O desafio do Fórum Social Mundial: Um modo de ver”, se tornou um dos idealizadores. “Eu a achei genial e nos juntamos imediatamente a mais gente para enfrentar o desafio. A proposta de Grajew mostrou-se extremamente oportuna e serviu imediatamente para que muito mais gente do que imaginávamos se reencontrasse, no maior entusiasmo”, lembra hoje, quinze anos e quinze edições do FSM depois.
O ano de 2003 marcou também o primeiro Fórum após a posse de Luis Inácio Lula da Silva como presidente da República, dando início a quatro governos consecutivos do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil. Era o início da era dos governos de esquerda na América Latina. No seu relatório de participação no Fórum, Monja Coen, representante da comunidade Zen Budista, analisa a ligação entre o evento e as transformações políticas que começavam a acontecer na região: “Havia grupos com bandeiras vermelhas e siglas de partidos políticos em passeatas de vozes fortes contra a ALCA, o FMI, a guerra no Iraque e pela libertação da Palestina. (…) Todos os representantes estrangeiros conclamavam a importância do novo governo do Brasil, dando esperança. ”.
Se as duas primeiras edições – com 20 mil e 50 mil participantes, respectivamente – já haviam surpreendido os organizadores, a terceira edição bateu todos os recordes possíveis em números. Cerca de 100 mil pessoas estiveram em Porto Alegre em 2003 para seguir a discussão sobre a possibilidade de um outro mundo. Praticamente uma cidade de médio porte inserida dentro da capital durante seis dias de debate. O terceiro FSM credenciou 20.763 delegados, de 156 países; teve 1.286 oficinas, com participação de 650 voluntários e um custo total de US$ 3,485 milhões. Os participantes deixaram pelo menos US$ 20 milhões no comércio e serviços de Porto Alegre. E voltaram a conhecidos temas.
Lula, recém empossado Presidente da República, durante o FSM 2003 | Foto: Secretaria Internacional do FSM
O Fórum contra-ataca
Em sua segunda participação no Fórum, o argentino vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel voltou ao tema que levou 20 mil pessoas a marcharem pela capital, no ano anterior: a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Esquivel retornou a discussão sobre a subordinação da América Latina a países ricos, destacando a importância do Mercosul e de “unir forças”. “As pessoas começam a ver com clareza a necessidade de atacar a criação da Área de Livre Comércio das Américas, da forma impositora como está colocada, a militarização norte-americana na região e as dívidas externas dos países latino-americanos com o FMI”, afirmou.
Participante protesta contra guerra dos EUA no Iraque, durante Fórum de 2003. | Foto: Ayrton Centeno/Arquivo pessoal
Noam Chomsky, o linguista norte-americado do Instituto de Tecnologia de Massachusets (MIT), também colocou os Estados Unidos como questão central de sua conferência de encerramento do Fórum. No ano anterior, ele havia sido a estrela da edição ao criticar as guerras ao terror conduzidas por seu país. Dessa vez, a conferência partiu do mote: “Como confrontar o Império”. Chomsky abriu sua fala declarando: “Estamos nos reunindo em um momento único de várias maneiras na História, que é ameaçador, mas também cheio de esperança. O Estado mais poderoso da História mundial proclamou, em alto e bom som, que pretende comandar o mundo através da força”.
Sentado ao lado de Leonardo Boff, o ideólogo da Teologia da Libertação, Eduardo Galeano voltou a Porto Alegre naquele ano para ver um Gigantinho lotado esperando sua fala. Em sua intervenção na mesa “Paz e Valores”, o escritor uruguaio também falou sobre as guerras capitaneadas pelos Estados Unidos e Israel no pós-11 de setembro. Ele lembrou das manifestações que tomavam conta de vários países do mundo “contra a vocação guerreira dos amos do planeta”: “Estas manifestações dão testemunho de um outro mundo possível”, disse.
As participações de Galeano se confundem com a história dos grandes momentos do Fórum. Suas ideias e aquelas defendidas nos verões de Porto Alegre do início dos anos 2000 estavam em sincronia. Chico Whitaker recorda, inclusive, de uma lenda dos Fóruns que ouviu de alguém há algum tempo: “Alguém já me disse que é dele o lema do FSM: ‘um outro mundo é possível’”.
A ligação entre o autor de “As Veias Abertas da América Latina”, falecido em abril deste ano, deve ser celebrada no evento comemorativo em Porto Alegre em janeiro. A ideia é ter Galeano como o homenageado da edição que marcará os 15 anos de Fórum Social.
De Fritoj Capra a Danny Glover
Além de bater recorde de participações de ativistas, delegados, jornalistas, estudantes, o FSM 2003 também teve um lista de presenças estrelar de representantes do pensamento da esquerda. Desde ministros do recém-inaugurado governo Lula como Marina Silva, passando pelo músico Daniel Viglietti, o fotógrafo Sebastião Salgado ao astro de Hollywood Danny Glover. Foi um espaço eclético a todos os temas, debaixo de vários focos.
O ator norte-americano Danny Glover, no Fórum Social de 2003 | Foto: Secretaria Internacional do FSM
“Um dos princípios do FSM é não convidar gente, de cima para baixo. No primeiro ainda o fizemos, porque achávamos que algumas ‘personalidades’ poderiam atrair participantes. Mas seu sucesso mostrou, já no segundo, que isso não era necessário. Para muitas ‘estrelas’ participar do FSM passou a ser uma oportunidade a não perder”, conta Whitaker. “Mas houve até mal-entendidos com ‘políticos’ acostumados a serem convidados, que não vieram porque não o foram. E outros diziam que viriam mas pediam espaços privilegiados, problema que deixávamos que fosse resolvido pelas organizações que os convidavam. Era o princípio da auto-organização de todas as atividades, de baixo para cima”.
A horizontalidade se revelava inclusive nas relações de interação entre palestrantes e ouvintes se relacionavam. O físico austro-americano Fritoj Capra, autor de obras como “Ponto de Mutação” e “O Tao da Física”, célebre por seu trabalho na educação ecológica, por exemplo, chegou a provar chimarrão antes de dar início a sua participação. “No anfiteatro do Parque da Redenção, enquanto esperávamos pelo início da Conferência sobre ‘Energia e Sustentabilidade’ o encontro com Leonardo Boff, Fritjof Capra, Lama Santem compartilhamos de um chimarrão de pessoas sentadas próximas”, relatou Monja Coen, na época.
Indígenas presentes na 3ª edição do FSM | Foto: Secretaria Internacional do FSM
Mas para Chico Whitaker, o grande momento da edição de 2003 foi a decisão de que estava na hora do Fórum partir de Porto Alegre. “Estrategicamente, talvez tenha sido a decisão do Conselho Internacional, após o Fórum, de entregar a realização do FSM seguinte aos indianos, que reuniram 120.000 pessoas em Mumbai, em 2004, criando um processo efetivamente mundial de realização de Fóruns Sociais de diferentes níveis e tipos”. O evento que havia nascido aqui, cresceu e precisava andar.
Protesto em favor a Palestina durante o Fórum | Foto: Secretaria Internacional do FSM